Vinho, tainha e dominó

Por Luiza Kons

Idiota essa coisa de andar por aí e não ver nada. De só enxergar dentro da cabeça. De só fitar problema. De só expor as dores da rotina maçante do colega chato que não te compreende. Tão bom sair disso e perceber que lá fora das suas estressadas massas cinzentas existe um mundo, e que esse mundo está perto, na verdade no seu próprio bairro, em um virar de esquina, ou na subida de alguns degraus. Ali existe alguma coisa mágica.

Você pode dizer que não. Que tudo é cinza e chamuscado de bolor. A decisão é sua. Mas se parar alguns instantes, vai notar.  Notei há mais de um ano, quando passava pela  Madre Benvenuta, um grupo de cabeças grisalhas, com o tempo eternizado na pele, jogando dominó. Confesso, só me detive na cena para saber se o boato de que Sálvio Viera, aquele sujeito do viral Vinho, Tainha e Muito Sexo, realmente jogava dominó na mercearia Madre Benvenuta, e sim era verdade.
Várias vezes passei em frente ao estabelecimento e lá estava o vasto bigodão de Sálvio a seduzir as peças do jogo. Gozado era que os outros não faziam nem conta. Sempre tive a impressão que essas cabeças grisalhas na verdade são de cor invisível, só pode: Como ninguém parou para tirar uma “selfie” marota com aquele “bigodão” preto?
Dia desses mudei o rumo da calçada e entrei na mercearia. Se estivesse em um filme, talvez a cena fosse de transição e mostrasse Ernesto José Nunes abrindo a portas da Madre Benvenuta há 49 anos (completa 49 em 6 de novembro), quando a Trindade e o Itacorubi não passavam de um vasto manguezal. Ou quem sabe, a cena fosse uma espécie de montagem em que se revelam rapidamente diversas micro passagens, como  a casa de madeira da polícia militar se transformando no conjunto de construções, a UFSC se desdobrando magnificamente de seu único prédio em vários, os  bares e pequenos comércios familiares desaparecendo da Madre.  O conjunto de possibilidades deixo aos colegas cineastas, de minha parte quis transparecer o fascínio pela passagem do tempo.

Em dia bom era a poeira e, em dia de chuva a lama, não tinha saída.

Ernesto, 72 de anos, com sua blusa azul igual aos olhos, não é desses que fica abrilhantando o passado ou remoendo magoas. Parece o tipo de sujeito que tenta colocar o solado do calçado no chão. Ele se lembra dos tempos de garoto em Ratones. O pai era um desses comerciantes que comprava produtos e revendia no ambiente rural e isolado. Ele lembra com carinho dos tempos de moço: quando foi morar com um amigo de infância em Santos, estado de São Paulo, para se firmar na vida. Nessa época, foi uma espécie de João Romão que fez de tudo para juntar uns bons trocados: foi padeiro, entregador de pão, coopeiro… Mas, diferente do ganancioso e materialista Romão, o homem dessa história nunca teve medo de deixar os sentimentos se sobreporem:

– Senti saudade, muita saudade. Naquele tempo eu ainda tinha os pais vivos.

Então, sete anos depois, o manézinho voltou. E tal qual o Romão do Cortiço abriu a própria Mercearia. A mulher com quem viria a se casar apareceu em um baile de Ratones. Giuceli da Vargem Pequena aceitou ficar com Ernesto, de Ratones, morando na Trindade. Tiveram cinco filhos e para alegria dele, todos moram perto. Naquele dia, pude ver o carinho por Diogo de três anos, um de seus oito netos. Por de trás da bancada próxima às linguiças penduradas e tendo como pano de fundo as embalagens de “Omo”  no alto da prateleira e as cachaças mais atrás, Ernesto segurou Diogo e com os olhos apaixonados, de quem se vê crescendo novamente, pediu:

– Tira uma foto minha com ele.

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Aos poucos o Ernesto, da blusa azul como os olhos da mesma cor, foi se soltando, e meio que virando filósofo da própria história:

– A escola do mundo é fabulosa.

Fabuloso foi ver aquele mundo avesso aos diálogos de universitários, comentando sobre festas mundanas, que servem de placebo ao calendário de provas monocromático. Fabuloso é ver um tempo que não depende das voltas de um relógio. Fabuloso foi presenciar conjuntos de mão se tocando ocasionalmente para embaralhar as peças de dominó.

Ali em um canto mágico e fabuloso, vi duplas, cada uma com quatro mãos, a se combinar, a emplacar as 28 peças em cima da mesa branca,  refletindo os últimos raios de sol do entardecer. Bem, você deve saber jogar dominó, né? O curioso é que se você não é de Florianópolis, vai ouvir um jargão diferente, meio jogo de loteria: dupla, sena, mega… para indicar as peças que são iguais, e que lá na minha terra se chamam carretão…

Eliminando a coesão do texto, vou ser brusca e prolixa como costumo ser na oralidade e vou te contar que estava um tantito cabisbaixa, e olha que a história do Ernesto… Dá para acreditar que perto da UFSC já teve uma pista de cavalo? Mas veja só, estou me perdendo de novo. Vamos lá, no final da tarde, o Sálvio levou seu bigodão até a Mercearia, e ficou lá tomando sua laranjinha da serra espiando as peças dos grisalhos. A conversa com ele renderia outro bloco de parágrafos, mas, por favor, não vamos roubar o conjunto de linhas dos olhos azuis da cor da blusa? Só digo uma coisa, o Sérgio Maestri de 60 anos, (e que se considera o maior vencedor dos campeonatos de dominó organizado na Mercearia, com quatro vitórias) comenta que o bigodão é feijão com arroz (bem mais ou menos). Talvez, tenha razão, mas vou te contar outra coisa no mágico e fabuloso mundo de jogadores de dominó, também tem muita história de pescador.

 

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